quarta-feira, 1 de abril de 2009

Doce de abóbora



Quando desligou o telefone, já estava atrasada. Na verdade estava no horário, mas sempre fora assim. O analista diagnosticara ansiedade, mas ela prefere definir como urgência, afinal fica mais leve. Não se sentia tão culpada por não conseguir mudar. Aliás era especialista em culpas. Era culpa por não ter terminado os estudos, culpa por ter furado fila aquele dia, por não se achar boa mãe, por não ser boa filha, por comprar cd pirata, por ...Foi se arrumar e nessa hora sempre lembrava de sua amiga Bia que ficava horas para decidir qual peça combinava com o que, ela não tinha lá muitas opções. Lá vinha mais culpa! Era culpa por não comprar roupas! Sempre achava tudo caríssimo mas nada tinha preço quando era para presentear, era literalmente um prazer.

Sem muita emoção deu uma olhadela no espelho e saiu. Gostava de pegar ônibus. Sempre achara que existiam três situações perfeitas para pensar nas coisas: Lavando louça, tomando banho e no ônibus. Era incontrolável, quando percebia já tinha programado até a agenda da semana.

Sentou no canto mais tranqüilo possível e rezou para que a criança que entrava com a mãe não ficasse perto (a coisinha gritava por um tal biscoitinho), mas era um dia bom. Sentaram à frente dela. Começando as duas viagens, lembrou:"Será que coloquei a ração pro gato?" Pensou no homem que iria ver... Era um homem forte, viril e um tanto truculento para o gosto dela. Nunca lembrava dos aniversários. Ela só lembrava de um gesto de carinho dele. Depois de uma discussão ele apareceu com um doce de abóbora daqueles de barraquinhas, bem ruinzinhosmesmo... ela adorou... para quem o conhecia sabia que era um privilégio receber dele um doce de abóbora, mesmo ruinzinho.

A criança fazia careta para ela e a mãe fingia nem perceber (ela sentiu uma vontade enorme de ter na bolsa uma daquelas balas que deixam a língua azul e dar para a tal coisinha).

Nos os anos de convivência percebia que ele gostava de se impor e exercer o poder que tinha. Começava de uma forma sutil, fala mansa, mas se precisasse chegaria aos extremos sem cerimônia. Esse extremo ela sentiu uma vez, queimando a face. Ela nunca aceitou, mas amava-o de uma forma intensa e quieta. Era estranho amá-lo sem admirá-lo. Será que tinha colocado a bendita ração?

Desceu no local marcado e sua mãe esperava com as costumeiras reclamações e indagações. A relação com a mãe era as das mais estranhas possíveis!Não se tocavam desde que tinha 10 anos. Algo se rompeu, o cordão umbilical que tem de ser eterno não existia entre as duas. Ela sentia por vezes um apelo desesperado da mãe por uma palavra mais amistosa. Não lembrava mais de como eram os olhos da mãe.Ela ajeitava o cabelo inquietamente mas aparentava calma. Nos passos até a clínica algo estranho... a viajem na sua cabeça não parava... " Já passei por esta rua... Quando foi? Acho que estava com Henrrique vindo daquela festa...". A mãe andava devagar por causa das pernas doentes, mas hoje ela não se importava, o dia estava calmo.

Derrepente sentiu no corpo e na alma um vento contrário. Não, na verdade não foi um vento! Foi um sopro que tinha o cheiro dele. Continuou andando mas já sabia que ele partira naquele exato momento.Chegou perto da cama, olhou para o corpo inerte. Não teve coragem de fazer o último carinho. Era estranho mas não conseguia sentir nada, nada.Achava natural a morte e olhava pra ele, olhava pra ele e não sentia.Ele morreu de câncer e ela só chorou no dia do enterro quando todas as imagens possíveis inundaram seu coração e seu corpo fraquejou.

Com ele durante toda sua vida ela não aprendeu muita coisa, mas nos último mês ele foi tão homem comum que ela finalmente conseguiu se ver nele um homem: Magro, frágil e desarmado. Pedia perdão e ela o consolava contando histórias divertidas da infância que ele nunca estava presente.Jamais admitiu entrar no quarto com aquelas máscaras verdes! Achava o cúmulo lembrar ao doente que ele estava doente! Não, pelo menos naquela hora não.Hoje gosta de lembrar dele, seu pai. Mas lembra sempre do homem frágil e com um doce na mão. Na verdade, o que ela mais queria na vida era ter ganho mais doces de abóbora.

Texto: Elaine Natal

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